Entre Netflix, MegafilmesHD e OpenCulture: Over The Top (OTT), Piratas e Cultura Livre

Texto baseado na compilação das resposta que dei para uma entrevista sobre OTT publicada parcialmente no blog Clap Filmes.

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Recentemente foram denominados como serviços Over The Top (OTT) aqueles que oferecem produtos (geralmente algum tipo de mídia) utilizando a internet como modos de distribuição de conteúdo (e, por isso, são chamados de “alternativos”) e de recursos de interação mediados por tecnologias digitais, como as smart TV (TV “inteligente”) ou simplesmente TV digital.

Alguns exemplos de OTT de conteúdo audiovisual são: Netflix, Apple TV, Hulu, Amazon Video, Android TV, entre outros (de conteúdo em celular também é possível citar: WhatsApp, Line, Facebook e outros messengers e para conteúdo de voz, o Skype, Facetime, Viper, etc, e por aí vai)

O crescimento do OTT está ligado ao surgimento de empresas oferecendo serviços pagos para acesso a grandes catálogos de conteúdo. O nome “Over The Top” é difícil de traduzir diretamente para o português e pode ser entendido por algo como “adquirir diretamente do balcão da loja”, ou seja, adquirir diretamente um conteúdo, sem necessidade de outros intermediários (sem precisar de “revendedores” do conteúdo)

A questão do OTT vem sendo enquadrada justamente pelo conflito com companhias tradicionais que oferecem serviços similares para conteúdos audiovisuais, tais como a televisão por assinatura/tv a cabo/satélite e a própria videolocadora (ambas não produzem os conteúdos, mas os revendem). Além de terem uma quantidade mais limitada de mídias a disposição, quando comparadas com OTT acabam perdendo o seu diferencial, que é conveniência (na videolocadora pode-se escolher e alugar entre uma diversidade de filmes, mais conveniente que ter que comprar filmes individualmente) e preço (na tv por assinatura, assinar um pacote de canais sai mais barato que se fosse assinar cada canal individualmente). Por OTT paga-se menos por mais opções, e não é necessário sair de casa — ou melhor, você pode até estar na casa de um/a amigo/a e acessar lá sua conta de serviço de OTT.  O OTT, por já ser conectado e digital, oferece conteúdos acessíveis por varias plataformas de acesso (notebook, tablet, videogame, celular ou monitores em geral) e não apenas pela TV (mas a incluindo).

Sobre a ideia de eliminar intermediários, acredito que esse “intermédio” (que também entendo por “interface”) pode até ser condensado, mas não é eliminado. Os próprios novos serviços de OTT se configuram como os novos intermediários entre as pessoas e os conteúdos. O que os serviços OTT realmente propõe por oferecer mídias “over the top” está no nível de “experiência do usuário”, ou melhor, de design de serviços, ou seja: a pessoa está em casa (ou em qualquer lugar), decide assistir algo, ligar seu aparelho e assiste (não sem antes, claro, tendo pago por isso).

Breaking Bad na Netflix e Record

Um debate similar (mas não igual) aconteceu alguns anos atrás com a discussão da “cauda longa” com a Amazon e o iTunes. É oferecido para venda um catálogo enorme de livros (incluindo ebooks) e/ou músicas disponíveis em um único lugar, e o acesso à uma mídia não precisa passar por cada editora ou selo/gravadora. Assim como no OTT, tem chamado a atenção por oferecem custos mais baixos do que os métodos tradicionais de distribuição de conteúdo, pois utilizam-se de “transmissão” via internet, e reduzem-se os custos com armazenamento, distribuição, no caso de arquivos digitais.

O que pouco se fala é que o OTT, apesar de parecer uma “novidade”, esta tem por base uma experimentação anterior (e atual) feita por milhares de pessoas pela internet, mediante a disponibilização de mídias livres, conteúdo aberto e, também, da chamada “pirataria”. Estas iniciativas foram criada pelos próprias pessoas interessadas (antes do OTT entendê-los como “consumidores”), que criaram sites, softwares e/ou por p2p (peer-to-peer) e que deu bases ao modelo que vem sendo discutido como OTT.

Assim, enquanto modelo, o que um Netflix oferece não é tão diferente do que propõe um MegafilmesHD ou oferecia um PopcornTime. O que é chamado de “novo”, nos limites restritos do mercado, é seu modelo de cobrança por conteúdos: paga-se uma assinatura para se ter acesso durante um tempo (geralmente mensal) a uma quantidade de conteúdos (parece-me que o modelo de negócios tradicional do rádio, que até pouco tempo parecia falido, retornou com toda a força)

Eu prefiro pensar que a especificidade do OTT não pode ficar atrelado apenas à custo de compra (e, mais especificamente a ideia de que OTT é igual a baixo custo), mas também outras formas de possibilitar o acesso e e ter em vista outros pontos que importam, enquanto meio de comunicação, como a interação e a horizontalidade de produção e distribuição de conteúdo. Ou seja, além de modificar a relação com intermediários, é interessante pensar em modelos mais distribuídos. Um exemplo que já temos hoje é o Youtube (como exemplo, ver a websérie de reality show fictício, The Vault). Hoje, sem perceber, muita gente experimenta o OTT consumindo vídeos no Youtube e, o mais interessante, não apenas assistindo conteúdo produzido por grandes marcas e empresas: tem um canal que permite que as próprias pessoas produzam conteúdo que se mescla e interfere nos demais. Isso é uma proposta muito diferente do Netflix, onde as pessoas continuam acessando apenas uma programação (agora, bem maior) que é definida por terceiros.

 

Outros horizontes: Cultura Livre e Piratas

Porém, se quisermos pensar especificamente em custos, temos outros dois caminho de OTT que quase não se discutem: um modelo que chamarei “Cultura Livre” e outro, que chamam de “Pirata”.

Falo de “Cultura Livre” porque muitos produtores e artistas, por meio de licenças Creative Comuns e/ou similares, vem disponibilizando vídeos de forma livre, aberta e gratuita, que podem ser assistidos, distribuídos e remixados. Parte do Youtube se encaixa aqui, mas são sites como OpenCulture que resgatem, organizam e colocam para circular uma quantidade enorme de mídias. Em Cultura Livre temos pessoas interessadas por mídia em aspectos multifacetados, com interesse por exemplo, no debate sobre memória, cultura e horizontalidade da comunicação, pois costumam o Livre do nome surge em oposição às restrições do direito autoral (esse monopólio do conhecimento cedido pelo Estado a um indivíduo ou organização) em um mundo cujas lembranças, a lingaugem e a vida das pessoas é mediada com e pelos meios de comunicação massivos. O BaixaCultura, site de cultura livre e (contra-)cultura digital e que discute plágio e a cópia como questões culturais e tem uma seleção de vídeos sobre o assunto, disponíveis para acesso livre. Na sua faceta em um modelo comercial, próximo a Cultura Livre, mantendo custo para quem assiste como zero, vem sendo experimentado o financiamento da produção por crowdfunding (financiamento coletivo) ou por publicidade, seja por patrocínio em marketing de conteúdo (ver por exemplo Natura Musical) ou por anúncios no sentido mais comum de marketing de intervenção.

Outro horizonte, Pirata (Pirataria é um nome geralmente utilizado de modo pejorativo, para associar práticas com crime, mas utilizo Pirata no sentido mais PirateBay da coisa), eu entendo associado à propostas como a do site MegaFilmesH (e dos milhares de outros similares) e de softwares como o PopcornTime. O primeiro é um site que disponibiliza vídeos de filmes e séries organizados, com os mesmos conteúdos hospedados em vários locais (para que, caso um caia ou não funcione no computador da pessoa, ela pode acessar via outro) mas recheado de publicidade e de usabilidade calculada (as dark patterns na sua melhor forma) para gerar receita  e no segundo, que oferece streaming de vídeo em tempo real baseado em torrent, que passa pela área polêmica da infração dos direitos autorais, mas que costuma ser deixado de lado no debate de OTT, apesar de toda sua inovação. Streaming de torrent em tempo real é algo poderoso, aliando distribuição e anonimato, e que poderia abrir portas para um futuro de transmissões ao vivo.

Tanto a alternativa de Cultura Livre quanto a Pirata são anteriores ao OTT e, na minha visão, não haveria OTTsem elas. Isso porque dificilmente o mercado realmente inventa algo novo, sendo prática comum a apropriação das práticas criadas pelas próprias pessoas. Entretanto, mais que isso, é importante não esquecer que apesar de anterior, não são “antigas”. Ambas também continuam contemporâneas ao OTT, e não uma etapas anteriores, pois se desenvolveram e criaram novos mecanismos. Seja com a versão 4.0 do Creative Commons ou com novos softwares e métodos de encriptação e distribuição de dados.


Para quem tinha internet desde o início de sua comercialização no Brasil, na década de 90, e acompanhou o início do Napster e dos sites de download, é visível que os modos de compartilhar de mídia online mudaram, e que aquele sonho da internet como “repositório universal do conhecimento” não só acabou como nunca aconteceu. Apesar de toda literatura que temas da importância das práticas de cópia (que, inclusive, são uma das grandes diferenças da internet que temos perante a que Ted Nelson imaginou com o Xanadu) e do discurso onipresente de compartilhamento (compartilhe com seus amigos! compre e compartilhe!) também é pouco debatido em OTT a questão da centralização de mídias que ela trás, pela criação de monopólios de venda de mídia (afinal, o mercado é global e, no exemplo das lojas de aplicativos, todos os aplicativos de celular do mundo lutam por espaço em menos de uma dezena de lojas/amarcas, repetindo: no mundo).

O futuro dos serviços OTT tem sido muito focado na disputa que deste com os modelos tradicionais de TV, como se fosse uma disputa entre “o novo” e o “antigo”. Claro, a TV ainda é “o” meio de comunicação, em termos de abrangência em diversas camadas da sociedade, e também movimenta muito interesse financeiro e de influência (na política e na circulação de informações). Um dos perigos que rondam este debate limitado a ideia de modelo de negócios é que a função social do OTT pode ser a mesma da TV tradicional se não observarmos atentamente a neutralidade de rede, a questão do Marco Civil da Internet e se forem ignoradas as experimentações e propostas de quem não está nesta área apenas por novos modelos de negócio. Após tantos anos de debate sobre televisão, acredito que a questão das mídias não pode continuar apenas reduzindo a sociedade ao espaço de “consumidores” de um modelo ou outro de conteúdo audiovidual.

Como última reflexão, deixo duas perguntas com outros horizontes: Como os serviços OTT poderiam ser pensados dentro de um modelo de serviço, tal qual o de “museus”, “arquivos” e “bibliotecas públicas”? Como serviços OTT podem se beneficiar de uma lógica mais descentralizada, inspirados em TV comunitárias/locais? Outras perguntas (e respostas!) neste sentido podem abrir o escopo do OTT para além de ser um novo modo de comprar mercadorias audiovisuais.