Você já leu isso aqui em algum lugar?
Se você tiver uma maçã e eu tiver uma maçã, e trocarmos as maçãs, então cada um continuará com uma maçã. Mas se você tiver uma idéia e eu tiver uma idéia, e trocarmos estas idéias, então cada um de nós terá duas idéias.
A Gabriela du Saint escreveu o Um Ensaio de Brincadeira sobre Maçãs e Idéias… usando a lógica acima como uma analogia para falar de inovação, cultura, medias e indústria cultural.
Confesso que essa comparação entre maçãs e ideias me incomoda um pouco. A frase é bem legal, mas vez e outra a vejo pipocando em discussões sobre colaboração e interação na internet, como uma frase de efeito para justificar que nas relações de trocas “físicas” [que seriam as “maçãs”] há uma igualdade e uma liberdade menor do que nas digitais [as “ideias”, no caso].
Desenvolvo abaixo algumas questões mostrando como este raciocínio pode ocultar questões importantes sobre as trocas online e offline.
On e Off
As comparações entre “mundos” online e offline geralmente preferem focar a atenção em como relações de troca online (de arquivos de audio, video, por exemplo) superam limitações encontradas no offline (de troca de mídias como CD’s, DVD’s ou outros).
Assim, ao colocar mundo físico de um lado e o digital do outro, compara-se o funcionamento daquele com as regras deste, como se a internet existisse “a parte”, em um universo paralelo. Existem “dois”? Que separação é esta se sentimos na pele o impacto de um post, ou na mente a insistência de um tweet, e até no coração o título de um scrobble? O online só existe dentro do offline. Nenhuma rede é maior do que o mar, nenhum bit se transforma sem movimentar um átomo.
Que relações suportam a troca de ideias?
As trocas de ideias, ao associada com o processo de comunicação verbal que é realizado por meio da fala ou da escrita, não costuma ser vista como um acontecimento físico, tecnológico ou material. Mas como trocamos ideias? Afinal, quando falamos nós trabalhamos com a vibração do ar. Quando escrevemos, pressionamos uma tinta contra o papel até ele se prender neste.
Qual a diferença entre uma maçã e uma ideia?
Com o computador conectado a internet, o mesmo acontece. Todo um sistema físico se relaciona, interage e se modifica. Mas não vemos o disco rígido gravando cada 0 e 1, ou o tráfego de dados por cabos, satélites. Porém, aquilo que observamos na tela e interpretamos no plano simbólico, acontece de alguma maneira. Uma ideia não é expressa independentemente da matéria.
Questões de qualidade
Ao trocar ideias diferentes, cada lado da troca fica com duas ideias. Então quanto mais ideias, melhor? Qualquer ideia serve? E no caso das maçãs, elas são todas iguais?
Por que discutir tudo isso? Porque é comum esquecer que deve-se ter um computador antes de acessar a web, ou de dinheiro para a lan house, que é necessário comer todo dia para ficar horas navegando na rede.
Para trocar ideias, preciso comer uma maçã antes.
Se trocarmos exatamente a mesma ideia, vamos continuar só com a mesma ideia. Entretanto, com fome, uma maçã pode ser “melhor ideia”. A não ser que seja uma ideia que leve a buscar mais maçãs. Mas aí eu não trocaria uma maçã que já tenho por outra, certo?
Com categoria
A lógica de trocar maçãs e ideias se baseia em trocas de uma mesma categoria, e por isso deixa um ponto falho: porque eu trocaria uma maçã por outra? Posso comparar ideias com maçãs? Elas são de categorias comparáveis? Gilbert Ryle chama isso de erro categorial, que é quando se considera – erroneamente – como pertencendo a uma categoria algo que pertence a outra.
Maçãs e ideias são realmente comparáveis?
Um exemplo disso é o erro categorial cartesiano, que entende mente e corpo como pertencendo à mesma categoria substância. A grosso modo, em Descartes a mente e corpo aparecem como separadas, diferentes e, por isso, estão em uma mesma categoria (algo pode ser fruto da mente ou do corpo). Por isso esse o dualismo de Descartes parece negar o corpo, pois só sei que existo por causa do pensamento – que vem da mente; e não do corpo – que é suscetível às dúvidas). É a mente uma substância diferente do corpo? Não estão conectados? Sua relação parece ser próxima que a doutrina cartesiana propõe…
E mais: uma maçã pode não seja igual a outra, uma mesma coisa não seja igual a outra, dependendo de quem eu recebo. Imagine trocar um livro com uma pessoa que você gosta muito. O livro que você tem agora, é o livro que ela trocou com você, este livro tem uma história, veio de alguém que decidiu dar este (e não outro) livro, escolheu para você.
E você, o que achou do texto? Teve alguma ideia ou deu vontade de comer uma maçã?